Houve um tempo em que havia mais do que tempo. Não sei nomear o que nos escorregou das mãos. Por entre os dedos do amor, a areia humedecida da ampulheta secou. Se fosse de outra forma, não seria o tempo. A manhã às vezes traz-nos a lua de olhar aguçado. Gostava de te beijar as entranhas, de saber do que és feita, aí dentro, dentro das artérias do coração Gostava de te ouvir cantar quando a luz apaga e ninguém consegue comprovar que também és humana. Era em ti que eu viria a adormecer, a beijar a tua alma. Não podemos ser todos iguais, mas podemos abrir janelas nas paredes, podemos abrir rios nos trilhos das florestas, podemos amar quem nunca foi amado. Vinho tinto, sempre o vinho tinto a lembrar-me que a volúpia faz parte da vida, como o Porto faz parte da alma. O espirituoso está na capacidade de tirar os pés da terra, sem nunca arrastar os dedos inferiores. O corpo humano foi feito para ficar de pé, com os pés na terra, a empurrar para cima, com os olhos no Todo. Podíamos ter sido
Sonho ainda com o que poderíamos vir a ser como se não sentisse a realidade a tocar-me os pés. Alcanço, com as mãos, a nuvem de maior altitude, onde repousas, íntegra, a mirar em redor. Era capaz de fantasiar que também me vês, que me olhas munida de imaginação e saber. Abala-me, porém, a âncora que acorrentei aos calcanhares. Não me deixa voar mais, não me libera da Terra. E sorrio, pois, quando chove, de olhos lamacentos. Nesse estado meio líquido, meio sólido - metade quente - sinto-me inteira com a possibilidade de te beijar. Cresci a correr à chuva e, por isso, a ser castigada. Pudesse eu despir-me de todo o romantismo e dedicar-me a correr. Invejo vê-los possessos de determinação, conhecendo já o caminho, de respiração controlada, a beijar o vento e a suar a dor. Invejo-lhes a disciplinada manutenção dos corpos. Desejo-o para mim, mas eu sou mais cabeça, coração na boca e amor nas mãos que oferecem de olhos fechados. Não se corre de olhos fechados.