Avançar para o conteúdo principal

Não era grave. Ela estaria viva no dia seguinte.

Há uns dias fez 4 anos que umas das minhas amigas morreu. Escrevo esta palavra, mas ela ainda me custa escrever, ainda me custa dizer como se toda aquela situação voltasse de repente a arrancar a pele da mesma forma que então.

conhecia-a já há muitos anos. Nós dávamo-nos bem. Não éramos melhores amigas, nem éramos inseparáveis. Mas apreciávamos verdadeiramente a companhia uma da outra. Andámos no mesmo colégio e, embora só nos encontrássemos no final das aulas, o percurso do colégio a casa era entre nós as 3: eu, a X e a L. A maioria das vezes saíamos do autocarro umas paragens antes e fazíamos o resto do percurso a pé e a falar. Não me perguntem sobre que falávamos mas gostávamos de o fazer. O primeiro destino era o da L e pouco depois o meu. Muitas vezes, a X ficava comigo, na minha paragem, a falar mais. Outras vezes ia namorar às escondidas dos pais e eu encobria-a se a mãe me ligasse preocupada por ela estar atrasada. Não era grave. Ela estaria viva no dia seguinte.

Quando ela ficou doente, eu já não a via há um tempo. Ela ainda andava no colégio, mas eu já estava a estagiar. E foi de um momento para o outro. Desmaiava muitas vezes sem que ninguém percebesse porquê. Ia para o hospital. Fizeram-lhe diversos testes e não conseguiam descobrir que doença ela tinha. Ficou hospitalizada. Poucos dias passaram e as notícias que recebíamos eram cada vez piores. Só não tínhamos noção que eram TÃO más - ou não queríamos acreditar. 

Enviámos uma mensagem com a letra "Um pouco de céu" da Mafalda Veiga - a preferida dela. E ela respondeu com muita alegria. Um dia depois fomos, em grupo, ao hospital visitá-la. Tínhamos comprado chocolates dos bons para lhe adoçar o apetite... Não chegámos a vê-la. 

Ela tinha um tumor no cérebro e tinha-se alastrado a todo o corpo. Nesse mesmo dia tinham-lhe induzido o coma. Os pais, coitados dos pais, ... parte-me o coração só de me voltar a lembrar de como eles estavam nesse dia. E o irmão parecia uma barata tonta. Legalmente podíamos ter ido vê-la, mas a mãe fez questão que não fossemos. «Ela está muito desfigurada, eu quero que vocês se lembrem dela como ela era». Claro que respeitámos, ainda meio parvas, com a porra dos chocolates numa mão e a porra da resposta dela à mensagem na outra. Olhávamos para ambas as coisas e pensávamos «mas.... » «mas... » «mas.... ». A única pessoa que os pais deixaram que a visse  naquele estado foi a mãe de uma de nós, por ser enfermeira. O relato foi... assustador. 

Ficámos naquele hospital ainda algum tempo à espera de notícias por parte dos médicos que a estavam a examinar. Saímos de lá com a pior das notícias «não está a responder a estímulos». Voltámos para casa na viagem de metro e autocarro mais silenciosas que, juntas, alguma vez fizemos  Do nada, uma pergunta «e os chocolates?!» e foi ver-nos a rir à gargalhada feitas idiotas (totalmente a lembrar a cena do funeral do George de Anatomia de Grey - talvez por isso compreenda tão bem essa cena anyway).  Depois parámos e o resto da viagem continuámos caladas. e o resto do dia. e o resto da noite...

Não éramos burras, mas todas nós queríamos tanto acreditar.... merda, queríamos acreditar que ela não ia morrer. afinal ela ainda estava viva. podia muito bem assim de repente mexer um dedo... Na minha cabeça imaginava aquelas cenas de filmes em que já não há esperança e derrama-se uma lágrima de tristeza no peito da pessoa e ela, do nada, acorda. Lembrava-me disso e queria acreditar e isso fazia-me sentir calor.

Não é, por isso, de admirar que o dia seguinte tenha sido um banho de água fria. A minha melhor amiga de então ligou-me:

«Desligaram as máquinas...»

...

(to be continued...)

LOV ' YOU

Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Diz que sim, que é uma doença grave. O bolo de chocolate não.

volta e meia leio algures a ideia de que as pessoas mais inteligentes são mais infelizes. Criam-se gráficos e coisas e merdas em tom humorístico que sugerem que o melhor mesmo é ser burro e feliz. Confesso que por vezes queria ser mesmo burra, sem preocupações sociais, políticas, ecológicas, éticas, e um monte de fififis que me enervam diariamente. Não sei... não sei o que é melhor. às vezes penso que os pais não deviam ficar felizes quando por alguma eventualidade é diagnosticado à criança um grau de inteligência ligeiramente ou muito superior. É UMA DOENÇA GRAVE. Essa notícia diz em letras pequeninas em baixo "inteligência pode causar efeitos secundários graves (verificados em 100% dos casos registados) como disfunção social, exclusão e auto-exclusão, humilhação pública, incompreensão generalizada, incapacidade para socializar, descrença nos outros, inadaptação existencial, alergia fatal a pessoas, conversas monologais, suicídio incompreendido, entre outros". Mas desde quan

Presságio

Houve um tempo em que havia mais do que tempo. Não sei nomear o que nos escorregou das mãos. Por entre os dedos do amor, a areia humedecida da ampulheta secou. Se fosse de outra forma, não seria o tempo. A manhã às vezes traz-nos a lua de olhar aguçado.  Gostava de te beijar as entranhas, de saber do que és feita,  aí dentro, dentro das artérias do coração Gostava de te ouvir cantar quando a luz apaga e ninguém consegue comprovar que também és humana. Era em ti que eu viria a adormecer, a beijar a tua alma. Não podemos ser todos iguais, mas podemos abrir janelas nas paredes, podemos abrir rios nos trilhos das florestas, podemos amar quem nunca foi amado. Vinho tinto, sempre o vinho tinto a lembrar-me  que a volúpia faz parte da vida, como o Porto faz parte da alma. O espirituoso está na capacidade de tirar os pés da terra, sem nunca arrastar os dedos inferiores. O corpo humano foi feito para ficar de pé, com os pés na terra, a empurrar para cima, com os olhos no Todo. Podíamos ter sido

Corpo controlado, mente descontrolada.

Olhei para ti ao longe, naquele entardecer outonal. Quis beijar-te quando me sorriste de alegria. Engordas-me as pupilas. Enterneces-me, digo. Procuro em mim a resolução para esta dificuldade de expressão como se aquela música portuguesa falasse finalmente para mim. Queria fazer-te ouvi-la. Queria que a conhecesses, que a pudesses entender sem que eu a traduzisse. Queria abraçar-te docemente na embriaguez da atracção, na profundidade dos nossos desejos. E ainda uma incerteza de completude a excitar-nos a paixão. Olhar-te pela manhã leva-me a soltar a imaginação. Consegues ver-me na tua? Mas o teu pescoço... Esse íman que magnetiza a minha mente. Já nem sei acalmar o fluxo dos meus nervos. O sangue circula freneticamente. E mais do que fluído, meu amor, é mesmo sem controlo. Como permaneço eu sob controlo, então? Respeito-te. O respeito e a admiração que te tenho controla-me o descontrolo. Corpo controlado, mente descontrolada. Quem me dera a mim saber-te mais. Resta-me aguardar pel